segunda-feira

A guerrilha na PF

O inquérito produzido pelo delegado federal Protógenes Queiroz, que embasou o pedido de prisão do banqueiro Daniel Dantas e companhia, é um texto confuso, eivado de convulsões ideológicas e pródigo em julgamentos sem nenhuma base na realidade. É um exemplo de como não deve ser conduzido um trabalho policial com ambição de ter impacto no resultado final do julgamento sobre seus alvos. O inquérito tem relatos imprecisos sobre os investigados e intermináveis transcrições literais de grampos telefônicos a partir dos quais são feitas suposições e emitidas opiniões. Perpassa todo o relatório um viés esquerdista na linha "somos contra tudo isso que está aí".

O capítulo dedicado à imprensa é dos mais disparatados. Sem uma única prova e até diante de evidências em contrário coletadas por ele mesmo, o delegado se contorce para concluir que jornais e revistas, entre elas VEJA, estariam ajudando Daniel Dantas a se safar ou a se fazer de vítima. Seria apenas risível, não fizessem essas acusações parte de um inquérito produzido por uma autoridade do estado brasileiro, com poder de dar voz de prisão e influenciar togados.

Ao fim e ao cabo, o amadorismo demonstrado pelo delegado Protógenes, como diz a Carta ao leitor desta edição, facilitará, provavelmente, a impunidade dos acusados. Daniel Dantas e o especulador Naji Nahas decerto têm muito a explicar à Justiça, mas nada do que realmente interessa ou possa levá-los a uma condenação está no inquérito que motivou a prisão de ambos e dos demais envolvidos.

A prisão de Dantas, em em especial a segunda, deveu-se ao flagrante armado de forma engenhosa pelos policiais, e não à má literatura do delegado Protógenes, que só vai beneficiar os acusados.

Deixando de lado as razões de fundo, como a falta de um sistema educacional eficiente, capaz de gerar uma quantidade suficiente de profissionais competentes nas mais diversas áreas, há uma razão de circunstância que explica o fenômeno Protógenes: a balcanização da PF. Ela hoje se encontra dividida entre uma parte boa e uma banda ruim.

A primeira está sob a batuta do delegado-geral Luiz Fernando Corrêa. Além de estar empenhado em limpar a Polícia Federal dos quadros corruptos, ele quer melhorar a qualidade técnica dos policiais federais, para, desse modo, produzir inquéritos e ações mais bem fundamentadas.

A banda ruim, por sua vez, age à revelia do delegado-geral e obedece a instintos de vingança pessoal e política, o que enfraquece o trabalho policial e lhe tira a substância e o vigor necessários para prevalecer na Justiça. Paulo Lacerda, ex-delegado-geral da PF e hoje na direção da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), tem ainda devotos na instituição que comandou e há a suspeita de que eles cumpram missões a seu pedido.

Lacerda odeia Dantas porque o banqueiro mandou a empresa Kroll espioná-lo em 2004. Suas impressões digitais foram vistas na organização e no deslanche da Operação Satiagraha.

O delegado Protógenes confiou a espiões da Abin parte do trabalho de vigilância e monitoramento dos suspeitos. A estratégia de ação e o resultado das diligências eram compartilhados apenas por Protógenes e pelo atual diretor da Abin, Paulo Lacerda, ex-diretor da PF. A explicação para isso: os superiores do delegado atuariam no interesse de Dantas.

Segundo a teoria conspiratória, o delegado-geral Luiz Fernando Corrêa foi alçado ao posto por pressões de políticos ligados a Daniel Dantas, e sua missão seria acabar com todas as investigações contra o banqueiro. Suspeitando de tudo e de todos, Protógenes recorreu à Abin para ajudá-lo na investigação e mandou recados a colegas seus da PF de que tinha provas e gravações que mostravam que eles estavam trabalhando a favor de Dantas. Não se sabe que provas são essas e nem se elas efetivamente existem. Em público, Corrêa elogiou e defendeu o trabalho da polícia, mas, assim como o ministro da Justiça, Tarso Genro, eles só souberam da operação quando ela já estava em andamento.

O delegado Protógenes, perdido nas névoas de sua teoria conspiratória, atira para todo lado. Entre seus alvos aparece o próprio ministro presidente do STF, Gilmar Mendes. Na semana passada, o ministro encaminhou uma representação ao Conselho Nacional de Justiça pedindo investigações sobre uma provável invasão de seu gabinete, onde teriam sido instaladas câmeras de vídeo com o objetivo de espioná-lo. Em conversas com auxiliares, Protógenes revelou que a polícia tinha imagens gravadas no gabinete do ministro que mostrariam uma estranha proximidade de assessores do tribunal com os advogados de Daniel Dantas. A insinuação: o presidente do Supremo Tribunal Federal teria concedido o habeas corpus libertando o banqueiro mediante um acerto prévio com os advogados.

A atuação e o inquérito do delegado Protógenes, que abriga contrabandos de Lacerda contra seus desafetos, só não podem ser classificados como típicos de um estado policial, porque os estados policiais costumam ser mais competentes. Em determinados momentos, ele parece um aluno de faculdade de sociologia tentando impressionar o mestre esquerdista com frases de efeito.

Para justificar a renovação da autorização dos grampos telefônicos, Protógenes recorre a uma frase do destrambelhado lingüista americano Noam Chomsky: "A mídia é um veículo independente, comprometido com a verdade e imparcial, certo? Errado!".

Ao ritmo de uma revolução por parágrafo, cita, ainda, o suíço Jean Ziegler, autor do livro A Suíça Lava Mais Branco: "Se prevalecem grandemente da deficiência dos dirigentes da sociedade capitalista contemporânea. A globalização de mercados financeiros debilita o estado de direito, sua soberania e sua capacidade de agir". Ele também acha que Freud não explica: "Comparar a gigantesca organização criminosa comandada por D. Dantas com a de N. Nahas seria um ‘paradigma ingênuo’ ou aplicar a simetria das condutas criminosas estaríamos diante de um método freudiano primitivo e ridículo". Não tente entender. Não tem sentido.

No inquérito, há uma "análise" segundo a qual o banco Opportunity "tem pessoas infiltradas no Comando do Exército, onde estes indivíduos promoveriam os interesses do grupo, principalmente espionando ações militares estratégicas e secretas". Será que Dantas planejava montar uma base de mísseis em sua cobertura na Vieira Souto?

O delegado Protógenes mostra também que não baixará a guarda "contra tudo isso que está aí". Ao abordar uma suposta tentativa do deputado Delfim Netto", articulista da revista Carta Capital, de emplacar Naji Nahas na gestão do fundo soberano planejado pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, ele vocifera: "Ante as ameaças de corsários saqueadores das riquezas do nosso país, deixo aqui registrado que o ‘amanuense’, que ora subscreve a presente peça, e por ‘cautela’ alerto aos incautos, seja de forma individual ou organizados criminosamente para tal finalidade, que estarei de prontidão comparado a um integrante da Brigada dos Tigres, fazendo um acompanhamento detalhado do futuro Fundo Soberano".

Ouvido por VEJA, Delfim Netto disse: "Esses métodos de investigação têm de ter limites dentro do estado de direito. Eles não só invadem a privacidade das pessoas que não têm qualquer relação com a investigação – o que, por si só, é gravíssimo – como também, neste caso específico, violentam a lógica. A investigação diz que eu planejo tirar vantagens escusas da criação do fundo soberano. Como, se fui contra o fundo soberano desde o começo? Isso aí é público. Isso não é trabalho da Polícia Federal. É produto de um insano dentro da PF. Deve ser um neonazista. Sabe Deus o que a cabeça do sujeito imagina".

No inquérito, há a transcrição de uma conversa entre "possivelmente" Gilberto Carvalho, chefe-de-gabinete do pre-sidente Lula, e Humberto Braz, homem de Dantas. O diálogo gira em torno de uma "conta-curral", na qual aparentemente seria depositada uma quantia em duas vezes, em troca de um trabalho de "consultoria". Carvalho, na conversa, é chamado de "Giba".

Procurado por VEJA, o chefe-de-gabinete da Presidência, por meio da assessoria de imprensa do Palácio do Planalto, afirmou que jamais conversou por telefone com Humberto Braz, a quem não conhece. Disse ainda que ninguém o chama de Giba. "Meu apelido é Gil." E concluiu: "Isso tudo é uma maluquice". É mesmo. Só que, por causa dela, Dantas e companhia talvez não paguem por seus crimes – os de verdade.

Na Veja